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sexta-feira, 24 de julho de 2015

Dias.

Nem sempre a vida é justa. Há dias em que a injustiça é tão grande que rouba o espaço para se viver. Mas lá tentamos. No meio de meio  sufoco, lá se aproveita cada golfada de ar , como se fosse a ultima, sempre à espera que não seja.  
Há dias em que se perde mais vida do que outros. Há dias em que o vento nos leva o cabelo, a paciência e a fé. São dias de morte. Ela estende os braços, adianta que o abraço está perto, mesmo que não o queiramos receber. Há dias que são pó e o nosso corpo brisa. Há dias em que a felicidade tira férias e só o arrependimento marca presença. Depois há outros. Os dias de sorte. Acordamos com a pele radiante, o sol brilha, o arroz fica no ponto e o tal vizinho odioso, finalmente mostra os dentes num sorriso afável. O elevador funciona, não há trânsito e recebemos aquela chamada.  Dias de fogo de artificio, dias de festejo, dias com a mesa cheia, a barriga cheia, o sangue a correr bonito nas veias. O coração enche, crescem os sonhos. Há dias verdes, brilhantes, valiosos.  
Acima de tudo, todos os dias  são dias, todos são vida, todos somos nós. 
Há dias em que vamos recordar que devíamos ter vivido mais.
Devíamos.
Devíamos ter visto mais vezes o mar, ter escrito mais cartas.  Devíamos ter guardado tempo para rebolar na relva. Devíamos ter somado mais noites em  conversas existenciais, devíamos ter priorado  o espiritual. Devíamos ter substituído os comprimidos por beijos. Devíamos ter mergulhado de cabeça sem fazer grande uso dela. Devíamos ter perdoado, tudo. Devíamos ter feito horas extraordinárias a aprender a voar.  Devíamos ter confessado o quanto nada sabíamos ser. Devíamos ter sido maiores, nutrir o corpo e deixá-lo ali a crescer com todos aqueles ideais. Devíamos ter impedido que alguém nos obrigasse a arrota-los por uma questão de segurança moral. Devíamos ter vendido o carro,  construído a árvore. A nossa casa em nós. 
Devíamos ter percebido a tempo, o quando o tempo tudo leva. 
Um dia...
 Vamos recordar o quanto a juventude e a velhice são iguais, o quanto longe estávamos de nós mesmos, sempre.  Vamos recordar com um sarcasmo idiota a nossa cobardia brindada a champanhe. Vamos chorar porque só há pó. Pó e terra. E bichos que crescem, e se alimentam do corpo de alguém que um dia também nos alimentou. Vamos chorar porque já não existe a protecção do amanhã, porque é impossível substituir o que já foi. Vamos chorar pela carcaça, pelo orgulho, pela ruga de obstinação que nunca deixou de lá estar.  Vamos recordar os afinais...  Vamos assumir todas as possibilidades que permitam calar a culpa.  Um dia vamos recordar, e vai haver lágrimas para o provar. No último dia, o som do sino que vai saudar a ida, vai acordar a dor. Vai lembrar todos os sinos no mundo que nunca ouvimos tocar. 
Todos os dias são dias. Todos são vida, todos somos nós. 
O adeus é dito em silêncio. Não há tempo, nem motivo, para promessas falsas quando o outro desaparece. O túmulo é a sua boca, e a sua boca gelada, os seus dedos gelados, o peito gelado, os olhos gelados , repousam no túmulo. Na boca que ainda vive, bochecha-se o amargo  irremediável. Foram-se os dias, foi-se a vida, foram eles. 
Ficámos nós.




Lili

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